A inconsequência da social-democracia facilitou a chegada do fascismo.
Não costumo ler à procura de profecias ou consignas – mas a Alemanha Ensanguentada do Aquilino Ribeiro véu buscar-me essa sentença nos miolos.
Aquilino Ribeiro: da Beira Alta (1885) a Lisboa (1963). Homem de fugas e exílios. Andou por Vigo. Alinhou com os pequenos e contra grandezas. Mais de vinte romances e novelas, traduções, biografias. E as tílias quase centenárias do átrio da casa de Soutosa, que visitei em janeiro.
Alemanha Ensanguentada arranca de comboio, de Herbesthal a Berlim, a 20 de setembro de 1920; finaliza em Amiens, na quinta-feira 15 de novembro – e entrementes: de Berlim a Parchim; Schwerin; Hildesheim; Hameln; Pyrmont; Hanovre, Hamburgo; e finalmente aos campos de batalha da Primeira Grande Guerra: Béthune, Lacouture, Bapaume, estrada de Arrás, Courcelette, estrada de Amiens.
O livro véu ao prelo em 1935. Aquilino lembra uma Alemanha exangue, sem fôlego, governada só por fantasmas, que só um cego não veria tomar-se daquela febre que devia conduzir a Hitler e ao estado de exaltação patriótica que apavora o mundo. A afeição polo país não cega o autor, que vê no orgulho militarista uma planta geradora de monstruosos ramos.
Entretanto, os social-democratas não socializavam a grande indústria nem expropriavam latifúndios. Pelo contrário, semelhante atonia acabou por dar fôlego à reação, chamando à vida os exânimes burgueses e os aristocratas.
Já na França, La Couture, terra regada de sangue português. Numa coluna, ao pé duns versos mutilados de Camões, lê-se: Hommage du Portugal à la France Immortelle. Aquilino indigna-se: os filhos de Portugal ainda homenageiam a França depois de terem entregado as vidas para libertá-la dos alemães.
A Alemanha mais aprazível do livro é a de Parchim e campos de Meclemburgo, onde Aquilino topa, debaixo de umas tílias, labregos polacos – irmãos gémeos dos de Portugal: Ratinho da Beira, Lapuz da Polónia, mujique, são a mesma face projetada em três espelhos.
Grete Tiedman, a primeira esposa de Aquilino, também foi de Meclemburgo. Na casa da Soutosa, lemos a certidão de casamento e o cartão postal com uma igreja de tijolos do Báltico.
Voltamos para o átrio de tílias, quase enxergando a Serra da Estrela. Vejam aqui um loureiro e um São Pedro de enorme chave. E o palavreado então envereda pola grande depressão que flagela Portugal.
Que estas Terras do Demo não são pródigas. Que nas cidades, cada vez mais fome. Que aqui, em Soutosa, a gente se desenrasca com as hortas. Que as batatas, mais barato comprar do que plantar. Que o povo cada vez mais fiscalizado. Que para matar um boi, mais de 20 euros de portagens até Aveiro. Que ladrão de maçãs vai ao cárcere, enquanto a grande roubalheira é chamada de desvio.
A traição da social-democracia desbroçou-lhe o caminho ao novo totalitarismo de banda larga.
Que as tílias de Meclemburgo se apiedem dos filhos dos mujiques – deste eucaliptal à beira do Atlântico plantado.