POESÍA
Míriam Ferradáns, Agosto. Deseño e ilustración de Mauro Trastoy. Apiario, 2020. 24 páxs
por Susana Sanches Arins
O meu retrato primeiro, fora os de beba, é a fotografia vestida de gallega. Devia andar polos cinco ou seis anos e começara a participar no grupo da escola, Abrente. O retrato foi feito no pátio da casa, terra, cimento e blocos. Eu levo uma saia encarnada com as suas pretas riscas de veludo, uma camisa de homem branca, que não dava para encaixes e rendas, e um pano a modo de dengue. Modelo Korosi Dansas. Pareço um paucinho. Sou delgadinha e tenho os braços em alto, por cima da cabeça, com os dedos prontos a triscar. Era o que entendíamos por pose de dançarina. Estou mui séria. Muito, quando eu adorava estar no grupo e aprender moinheiras e vestir de gallega. Acho que foi porque a minha mãe me penteou com raia ao meio e cabelo lambido e eu acreditava estar feia para o meu retrato primeiro.
A essa imagem e a essa criança voltei durante a leitura do Agosto de Míriam Ferradáns. O maravilhoso foi ter chegado a essa fotografia num golpe de verso no meio do poemário, após ter eu trilhado outros caminhos, outros ecos, nos poemas anteriores. E diz isto todo da autora, da sua mestria, pois escreve uma plaquette de apenas doze textos. Apenas.
Todo acontece na intimidade de um quarto. Um ramo de tulipas. Encarnadas. A observação metódica da decadência. Vai-nos falar do passo do tempo, é claro. A tensão de uma violência provocada polas flores que inicialmente não percebemos. Se são flores. Só umas pétalas e uns talos. Mas têm boca amarela e negra e, como a pétala-língua da capa, falam. E a água que lhes mantêm a aparência lembra os cadáveres nos congeladores funerários. Água também. Decadência e passo do tempo. Vai-nos contar dalgum marinheiro afogado no alto-mar, é claro.
É de súbito as tulipas dão a volta e viram saias de pano com riscas de veludo preto e os paucinhos são meninhas com os braços em alto e os dedos prontos a triscar. E eu volto à fotografia, a essa que devemos ter nos nossos álbuns e caixas a metade das mulheres da Galiza, a essa meninha que não era quem de ver a pobreza no retrato que lhe era feito ou que sim a via e era por isso que ficava séria e não polo penteado lambido com periquito.
E agora sim, nem decadência nem passo do tempo nem marinheiros perdidos. A morte como violência silenciada. A falta. A amputação de uma pétala, de uma língua. As flores a pronunciar a perda. O golpe recebido já quando menina e que deve ser dissimulado com a escusa da raia feia ao meio. A verdade anularia essa nossa conceção adâmica da infância. A boca amarela e preta que por fim pode ser aberta, e pode articular, no íntimo do quarto, a raiva, a ferida, o gesto regalado.
Quando li o Atlas, de Alba Cid, pensei em mim, mas que lhe deu a estas poetas polas tulipas? Porque os dous poemários que mais me impactaram nesta temporada começam por falar de tulipas. A confusão. Mastigar os bulbos como cebolas. O erro na tradução.
Dar o nome do turbante à flor. Revirar as meninhas tristes dos retratos e fazer delas tulipas.
Como ela quereria.