por Ramom Reimunde
Para nós, D. Ricardo Carvalho foi indiscutivelmente uma das figuras mais importantes das Letras na Galiza do século XX, talvez um dos seus quatro melhores autores. Ninguém podia negar a Carvalho, com um mínimo de objetividade, o direito de ser merecente do Dia das Letras. Mas negaram, durante vinte anos, contando os dez de respeito e dó. Um homem que, ainda sendo de baixa estatura física, tinha muito elevada estatura moral e intelectual, como bem sabemos os que tivemos a sorte de conhecê-lo de perto. Era heterodoxo nas suas ideias, talvez antiquado e conservador, muito especial de caráter, protocolário, analítico, ocorrente, meticuloso, académico e cultíssimo, lento e brilhante nos seus argumentários, com um forte caráter, com um génio e olhada terríveis quando algo o incomodava, e que inspirava respeito. Também havia outro Carvalho Calero, simpático, carinhoso, atento e cordial, de sorriso tenro e educado, muito bom amigo.
Era heterodoxo nas suas ideias, talvez antiquado e conservador, muito especial de caráter, protocolário, analítico, ocorrente, meticuloso, académico e cultíssimo, lento e brilhante nos seus argumentários, com um forte caráter, com um génio e olhada terríveis quando algo o incomodava, e que inspirava respeito.
Don Ricardo foi um homem com uma trajetória vital muito interessante, mesmo contraposta antes e depois da guerra civil de 1936, que podemos hoje conhecer por livros de Martinho Montero, Aurora Marco e de quem escreve, ou por números extra de revistas como Grial, Agália ou A Nosa Terra, além de numerosos artigos de jornal. E
muito mais que se vai divulgar este ano e o que vém, agora que se abriu a veda do silêncio.
Evoluiu este ferrolano desde o moço universitário metido em política galeguista, membro do Seminário de Estudos Galegos e um dos redatores do Estatuto de 36, passando por oficial do exército republicano, a cadeia e condena à morte, o duro pós-guerra no exílio interior, o ensino privado em Ferrol e Lugo, a produção literária e científica, a cátedra de galego na Universidade de Santiago, e o reintegracionismo dos seus últimos dez anos, em jornais, livros e palestras, em que defendia que o galego devia escrever-se como o português, pois eram e são a mesma língua, mal que lhes pareça a alguns que temiam perder os seus postos provincianos e castelhanófilos no país.
Os da minha geração conhecemos D. Ricardo no ano 1975, em que foi o nosso professor de galego em terceiro ano do curso de Filologia: um mestre temível por rigor e exigência, que impunha já sem falar, que nunca sorria na aula, acenando com os braços como um senador no foro, com poderosa voz modulada que nos prendia com o engado da sua oratória perfeita, lançava frases precisas en cadeia cadencial com inusitado rigor, todas previamente ordenadas naquela mente de assombrosa memória, entre longas pausas, esses sibilantes, longuíssimos siléncios circunspectos que aportavam suspense, para resolver com a afirmação final, as mãos em alto e um leve sorriso. Assim o lembro.
Ignorado durante trinta anos
Muito diferente foi depois na década de oitenta, já aposentado no seu gabinete de professor emérito no rés-do-chão da Faculdade de Filologia, mais humanizado e jovial, sempre cortês e amável, sobretudo com as donas e alunas, mas também com todos os que tivemos a sorte de estar à sua beira e ser os seus discípulos, apóstolos de uma causa “lusista”. Convivemos com o nosso Mestre e seguimos evangelicamente os seus ensinamentos, lemos cada linha que escreveu, fizemos-lhe entrevistas em jornais e vídeos, realizámos programas de rádio, partilhámos tertúlias públicas ou conversas privadas em Lugo, Viveiro e Foz, congressos de linguistas e viagens. Durante essa década de oitenta a noventa Carvalho Calero estava detrás de toda empresa cultural de signo reintegracionista, exercendo a sua influência e magistério, na sombra, mas sem ninguém discutir o seu liderado. Pudemos assim conhecer, nessa altura, um homem excecional, muito superior à miserenta e medíocre fauna literária que tanto abunda no país, entregados ao poder e o dinheiro.
Alguns mal-intencionados ou invejosos têm divulgado a maledicência de que Carvalho ficara caduco na sua idade mais avançada e que, por vingança de não ter sido presidente da RAG ou não ter conseguido levar para a frente a sua normativa ortográfica de 82, ter inventado o reintegracionismo.
Porém, este homem do que falo, foi ignorado durante trinta anos, e as suas ideias combatidas ou silenciadas, sumindo os seus seguidores no ostracismo e o despreço. Se bem houve também muitas homenagens, artigos, jornadas e congressos em sua honra e memória por parte dos seus afins, ou das câmaras municipais de Ferrol e Santiago de Compostela.
Alguns mal-intencionados ou invejosos têm divulgado a maledicência de que Carvalho ficara caduco na sua idade mais avançada e que, por vingança de não ter sido presidente da RAG ou não ter conseguido levar para a frente a sua normativa ortográfica de 82, ter inventado o reintegracionismo, seguido por uma centena de fanáticos que o reverenciavam como a um santão hindu. Realmente essa gente tinha outros projetos mais espanholizadores para a Galiza, e nem leram bem Carvalho Calero, nem conhecem as suas obras -entre elas a sua importante tese de doutorramento- nem compreenderam nunca que entre os seus correligionários linguísticos estavam, talvez, milhares dos melhores intelectuais e escritores do país, aos que lhes foi impedido publicar em imprensa e editoras. O achegamento ao português já vinha dos tempos de Pondal, de Nós, de Guerra da Cal, e foi claramente proposto nas “Directrices” em 1979 por Martinho Montero Santalha, entre outros, por Agal e pola AGLP. A sua biblioteca pessoal está depositada no Parlamento de Galiza, para consulta investigadora.
Alem disto, as mais destacadas autoridades universitárias da Europa, Portugal e Brasil também afirmam que galego e português são variedades da mesma língua e tanta gente não poderia estar enganada, nem ser conduzidos ao abismo como ratos por um visionário que toca a flauta em Hamelim. A história acabará dando a razão a Carvalho Calero.
Silêncio administrativo cando morreu
Teremos que confessar a dia de hoje que, efetivamente, tivemos um grande afeto a D. Ricardo, certa debilidade em aceitar tudo o que dele vinha -mesmo romances tão excelentes como Scorpio– respeitando sem discutir a sua autoridade bem merecida. Sempre estava disposto a opinar sobre uma questão posta, a fazer uma leitura crítica dos nossos textos, prologar-nos um livro, comentar um artigo, e mesmo colaborar com envio de artigos para revistas escolares ou participar generosamente nas nossas aulas de Bacharelato, em congressos, jornadas, palestras nos Liceus, ou deixar-se fotografar e entrevistar, plenamente consciente de que se achegava o fim da sua viagem e havia que deixar prova documental de que tinha passado por aqui e deixaria escola. A verdade é que o utilizamos como grande ajuda para melhor defender a causa, talvez excessivamente dada a sua idade. Mas ele gostava disso e jamais disse que não.

E assim foi até que morreu o 25 de Março de 1990 na sua amada Compostela da Universidade. Sentimos uma profunda tristeza e grande vergonha de ser galegos nessa hora, de pertencer a uma Terra e uma caste de homes que não honra os seus mortos mais ilustres como é devido. Houve silêncio administrativo das autoridades, por resposta.
As mais destacadas autoridades universitárias da Europa, Portugal e Brasil também afirmam que galego e português são variedades da mesma língua e tanta gente não poderia estar enganada, nem ser conduzidos ao abismo como ratos por um visionário que toca a flauta em Hamelim. A história acabará dando a razão a Carvalho Calero.
Apesar disso, lembro com saudade o seu multitudinário enterro em Santiago, especialmente quando ao seu passo um aplauso unânime ressoou nas escadarias de pedra da igreja de S. Francisco, palmas que ouvia por primeira vez num funeral, reservadas só para aqueles que as mereceram com a sua vida e obra. Quando depositaram o cadaleito no nicho do cemitério de Boisaca, nas gorjas dos últimos trescentos amigos que o acompanharam na última viagem, começou o canto coral do hino nacional completo de Pondal, iniciado com a inconfundível e polémica voz do deputado Beiras. Foi uma despedida emocionante e inesquecível, dedicada a alguém a quem admirávamos e ainda hoje, trinta anos depois, lembramos com respeito e carinho, relendo mais uma vez a sua obra e repensando as suas ideias, totalmente vigentes e próximas a serem levadas a termo.
Não houve uma bandeira azul e branca sobre o seu cadaleito mas, com certeza, bem o sabemos, D. Ricardo levava-a dobrada no peto do casaco, como sempre fizeram os melhores filhos galeguistas que honran esta pátria nossa.
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