Venres 22, Setembro 2023
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IMPOSSÍVEL REGRESSO À FERIDA

NARRATIVA

Tempo tardade, de Raquel Miragaia. Através Editora, 2020. 271 páxs.

 

por Isaac Lourido

No retorno de Raquel Miragaia à narrativa galega reconhecemos várias marcas presentes em obras anteriores: elaboraçom complexa das personagens e das relaçons humanas, perspetiva crítica, interesse polo mundo das mulheres e umha eficaz estética baseada na economia expressiva e em certa poeticidade. Mas também identificamos no romance traços relativamente inéditos, ou reformulados, que podemos sintetizar numha aproximaçom dos limites da auto-ficçom –muito em voga no período das últimas crises– e numha entrada mais penetrante nos territórios do trauma e da memória política, com base em repertórios próprios da narrativa de mistério.

 Na obra conta-se a história do regresso de Branca à casa familiar na aldeia de Tardade depois da morte da sua nai, decisom que a obriga a confrontar-se com o seu passado e com a sua vida atual. Por um lado, Branca depara-se com a incompreensom do seu irmao Isaac, que quebrou definitivamente os laços com um mundo em extinçom. Por outro, deve assumir o desconhecimento da vida real e de múltiplas faces da sua nai, que só consegue recompor graças a Modesta, umha vizinha idosa com quem acaba por estabelecer umha intensa relaçom de cumplicidade. A história completa-se com a reconstruçom dum período temporal mais recuado, que envolve as vidas dos tios-avôs da protagonista, Serafim e José, e que acaba por voltar de maneira expressiva ao presente.

 Ao longo do livro, a narrativa do eu consegue distanciar-se dos perigos mais comuns da auto-ficçom contemporánea, nomeadamente a deriva para o individualismo hedonista e intranscendente. Ao contrário, o dilema a que se enfrenta a protagonista entre as suas “duas metades”, a do campo de que foi empurrada a fugir e a da cidade em que pretendeu assomar-se ao “progresso”, consegue adquirir na obra umha dimensom social e comunitária. Sendo um processo que, no plano pessoal, é também de auto-conhecimento e de aprendizagem, acabamos por identificar nele o percurso, problemático e contraditório, de quem abandonou o rural galego no pinga a pinga incessante do último meio século.

 Por sua vez, entramos na narrativa da memória dita histórica a partir das cartas que o tio Serafim enviou desde a emigraçom argentina, entre 1937 e 1962, encontradas por Branca numha gaveta esquecida. Ainda sendo um recurso usado com certo esquematismo, através das missivas reconstruimos umha versom parcial e interessada da história familiar que, combinada com os esclarecimentos de Modesta e a inesperada revelaçom final, acabam por desvendar para Branca um retrato mais completo, e mais doloroso, das suas raízes e, para quem lê, umha aproximaçom descarnada do trauma da guerra civil, e das injustiças e das feridas a ela associadas.

 A poética narrativa de Raquel Miragaia –nom a fechemos no caixote restrito da literatura reintegracionista, nom obviemos a discriminaçom– abre-se portanto a umha exploraçom crítica tanto da nossa histórica como das normas sociais no presente. Sabemos que há neste romance os vímbios necessários para perdurar, porque nos ajuda a pensar sobre as violências que habitam no medo e no silêncio, que transitam do pessoal para o coletivo através da instituiçom familiar, que tenhem nas mulheres um alvo específico e que, enfim, definem umha identidade coletiva que virou as costas ao estigma do rural.